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Memento Mori - A Lembrança da Morte

Atualizado: 12 de set. de 2022



Parecendo à primeira vista algo mórbido e digno de espanto para os ouvidos modernos, memento mori — a lembrança da morte — é recorrente na Tradição da Igreja.


O termo “memento mori” se originou na Roma antiga: enquanto um general romano desfilava pelas ruas durante um triunfo da vitória, atrás dele estava seu escravo, encarregado de lembrar ao general que, embora no auge hoje, amanhã ele poderia cair. O servo sussurrava para ele:


“Respice post te! Hominem te esse memento! Memento mori!”


"Olhe atrás de você! Lembre-se que você é um homem! Lembre-se que você vai morrer!”


A ideia da contemplação da morte é encontrada em outras religiões e filosofias como o judaísmo, budismo e estoicismo, por exemplo. Sempre vista como um mal, em Platão ganha novos contornos, já que para o platonismo havia algo de libertador na morte que, ao se despojar do corpo, atingia-se a pureza da vida da alma. Ele escreve em seu diálogo, Fédon, que “o único objetivo daqueles que praticam a filosofia da maneira apropriada é nada além do que estar morrendo e morrer”, é a separação final da alma e do corpo.


No Cristianismo a morte é ressignificada, pois, a imagem central do Novo Testamento é a Cruz de Cristo, o cristão é chamado a negar a si mesmo e tomar sua cruz, ou seja, é chamado a participar do martírio e sofrimentos de Cristo. A morte passa a ser desejada, pois o sacrifício do Cristo faz, daqueles que os seguem, participantes de uma nova vida.


“Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de partir e estar com Cristo, o que é muito melhor. Todavia, permanecer no corpo é necessário por causa de vocês.”

— Filipenses 1:23,24


Esta já é uma realidade observada a partir do primeiro mártir da Igreja, Santo Estevão. As perseguições dos primeiros séculos estão repletas de mártires, muitos entregando sua vida voluntariamente, repetindo de forma literal as palavras de Cristo: desprezaram a própria vida.



Atitude chocante aos olhos modernos, acostumados ao conforto da vida moderna e burguesa no ocidente ou, até mesmo, às novas práticas de confissões do neopentecostalismo, que evita e afasta de si tudo que é sofrimento, principalmente a lembrança da morte.


O Abençoado padre Serafim Rose explica a ressignificação da morte na Tradição da Igreja da seguinte forma:


“Os Padres também observam que a sentença de morte, que entrou em vigor após a queda, não foi apenas um castigo. Também era uma bênção, pois uma vez que um homem caísse, se ele permanecesse imortal, não haveria saída para ele. Imagine só: não poder se redimir, não poder ir para o céu, mas continuar a viver, viver e viver, sem esperança de acabar com tal estado. A morte põe um fim ao pecado. O fato de que temos medo da morte já nos desperta para começar a lutar. Mesmo que esqueçamos o Paraíso, teremos medo da morte e começaremos a lutar, para superar nossa natureza caída.
O piedoso Cirilo de Alexandria († 444) escreve acerca do significado de doença e morte para o homem caído: O homem, tendo recebido como destino um rápido e exaustivo sofrimento, foi entregue a doenças, angústias e outras coisas amargas como uma espécie de freio. Por não se conter sensatamente naquela vida livre de trabalhos e tristezas, ele é entregue aos infortúnios para que, por meio dos sofrimentos, ele possa curar em si mesmo a doença que lhe sobreveio em meio à bem-aventurança. Pela morte o Doador da Lei impediu a propagação do pecado e, no próprio castigo, revela Seu amor pela humanidade. Na medida em que ele, ao dar o mandamento, uniu a morte à sua transgressão, e na medida em que o criminoso caiu sob o castigo, assim, Ele fez com que o próprio castigo pudesse servir para a salvação. Pois a morte dissolve esta nossa natureza animal e assim, por um lado, interrompe a atividade do mal e, por outro, liberta o homem das doenças, liberta-o das fadigas, põe um fim às suas tristezas e preocupações, e cessa os seus sofrimentos físicos. Com tal amor pela humanidade, o Juiz mesclou o castigo.
Concluindo, São Simeão, o Novo Teólogo, escreve como que por meio da Crucificação e Ressurreição de Jesus Cristo, a sentença de morte é abolida: "O decreto de Deus: «Tu és pó, e ao pó voltarás», assim como tudo o que foi colocado sobre a humanidade após a queda, estará em vigor até o fim dos tempos. Mas pela misericórdia de Deus, mediante o poder do sacrifício extraordinário de Cristo, no futuro não terá mais nenhum efeito, quando ocorrer a ressurreição geral, que não poderia ocorrer a menos que o próprio Filho de Deus tivesse ressuscitado dos mortos, O qual havia morrido pela abolição do decreto acima mencionado e pela ressurreição de toda a natureza humana.”


A lembrança da morte é encontrada nas Escrituras, como no Eclesiástico de Jesus bem Sirach: “Em tudo o que fizeres, lembra-te do fim da tua vida, e então nunca mais pecarás” Ec. 7:36.


Também nos Evangelhos, onde Jesus sempre está lembrando aos seus discípulos acerca da sua morte, pois ele nasceu com essa missão. Em uma de suas parábolas, em Lucas 12:16-20, somos lembrados da brevidade de nossa vida e da incerteza de nosso fim.

O rico insensato planejava expandir os seus negócios e, em seus pensamentos, se deleitava com os prazeres de sua riqueza. Mas foi surpreendido de forma avassaladora:


“A terra de certo homem rico produziu com abundância; e ele pensava consigo mesmo, dizendo: O que eu farei pois não tenho espaço para guardar meus frutos? E ele disse: Eu farei isto: derrubarei os meus celeiros e, e edificarei maiores, e ali eu colocarei todos os meus frutos e os meus bens. E eu direi à minha alma: Alma, tens em depósito muitos bens, para muitos anos; descansa, come, bebe e alegra-te.
Mas Deus lhe disse: Tolo, esta noite te requisitarão tua alma, e de quem serão estas coisas que tu preparaste?”



A tradição monástica, em particular, procurou praticar a atenção plena na morte. Um ditado atribuído a Evágrio do Ponto afirma:

“Lembre-se do dia de sua morte. Veja então qual será a morte do seu corpo; deixe que seu espírito seja pesado, tome dores, condene a vaidade do mundo, a fim de poder viver sempre na paz que você tem em vista, sem enfraquecer".

Entre as orações da Igreja, no Livro de Oração Ortodoxo, há uma “Oração de São João Damasceno, para ser dita apontando para a cama”. Ela diz assim:

“Ó Mestre que amas a humanidade, será este leito o meu túmulo ou Tu iluminarás minha pobre alma com mais um dia? Vê, o túmulo está diante de mim; vê, a morte me confronta.”

O quão estranho nos soa meditar acerca da morte antes de dormir ou mesmo comparar a cama em que dormimos com um túmulo? E, no entanto, passamos a maior parte do tempo absorvidos em nossos problemas e pensamentos, afastando a imagem da morte de diante de nós. Nas notícias que acessamos em portais virtuais ou na televisão, somos bombardeados por notícias de guerras e assassinatos. Na televisão, cada notícia indigesta é seguida por uma “leve” ou por uma propaganda engraçada. Para quem sabe, essa é uma técnica usada nos meios de comunicação para não levar o telespectador à loucura. Entretanto, produz um efeito de alienação. As pessoas ficam como que anestesiadas. São informadas das desgraças, mas vivem como se isso jamais os atingiria. Somos levados à prática do “esquecimento da morte”.


Por outro lado, o desespero e a depressão têm levado muitos à prática do suicídio. As pesquisas apontam que adolescentes e jovens são mais suscetíveis ao ato. Embora haja inúmeros gatilhos, a decisão de pôr fim à própria vida é uma inversão da concepção da morte para a Ortodoxia. Enquanto que para este a morte é a concretização da esperança, de completar a participação na Divindade, para o suicida a morte é o fim do tormento, a solução final para um problema que ele não conseguia lidar.



Para aqueles que não têm esperança a morte é assustadora e provoca um efeito terrível sobre a alma. Por isso ela é “evitada”. O memento mori só pode ser resultante de uma fé viva Naquele que tem poder sobre a vida.


“Se Cristo não ressuscitou, a sua fé é vã e ainda estais em vossos pecados. E também os que dormiram em Cristo pereceram. Se apenas nesta vida temos esperança em Cristo, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas, de fato, Cristo ressuscitou dos mortos, as primícias dos que dormem. Pois como por um homem veio a morte, por um homem veio também a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo” —I Coríntios 15.17-22

Em “A Escada da Ascensão Divina”, São João Clímaco relata a história de um monge negligente, chamado Hesíquio. Embora monge, passou a vida em completa negligência com sua alma, preocupando-se somente com cuidados mundanos.

Certo dia, ele adoeceu gravemente e passou por um período de uma hora como morto. Sua alma deixou o corpo enquanto estava, literalmente, morto. Deus permitiu que ele voltasse à vida. Assim que acordou, implorou que todos o deixassem sozinho. Esse monge se levantou e selou a porta de sua cela batendo algumas madeiras para que ninguém entrasse e nela ficou enclausurado por doze anos comendo apenas pão e água. Ele passou por todos esses anos chorando diariamente por seus pecados e em oração contínua. São João Clímaco diz que ele ficava catatônico, chorando silenciosamente. Sentindo que estava prestes a morrer, arrobaram a porta de sua cela e tentavam falar com ele fazendo muitas perguntas. Mas ele disse apenas uma coisa: “Perdoem-me! Ninguém que constantemente se recorde da morte será capaz de pecar”. E morreu pacificamente.


Os Santos Padres da Igreja também nos ensinam a praticar a lembrança da morte continuamente. São Gregório, pergunta: "Fazemos da vida uma meditação da morte?”


Santo Isaque, o Sírio, o grande mestre espiritual do século VII, nos exorta: “Prepare seu coração para sua partida. Se você for sábio, você vai esperar isso a cada hora.”


“Nossa mente está tão obscurecida pela queda que, a menos que nos forcemos a recordar a morte, podemos esquecê-la completamente. Quando esquecemos a morte, então começamos a viver na Terra como se fôssemos imortais, e sacrificamos toda nossa atividade ao mundo sem nos preocuparmos minimamente nem com a terrível transição para a eternidade, nem com nosso destino na eternidade. Então ousada e definitivamente ignoramos os mandamentos de Cristo; depois cometemos todos os pecados mais vis; depois abandonamos não apenas a oração incessante, mas até mesmo as orações indicadas para tempos específicos - começamos a desprezar esta ocupação essencial e indispensável como se fosse uma atividade de pouca importância e pouco necessária. Esquecendo a morte física, morremos uma morte espiritual.

Vocês que se consideram merecedores de recompensas terrenas e celestiais! Para vocês o inferno é mais perigoso do que para os pecadores flagrantes, porque o pecado mais grave entre todos os pecados é a altivez, a autossuficiência — um pecado dos olhos mortais invisíveis do espírito e que muitas vezes é coberto por uma máscara de humildade.

A lembrança e a meditação da morte foi praticada pelo maior dos Santos Padres. De Pacômio, o Grande, o escritor de sua vida diz que ele ‘se manteve constantemente no temor a Deus com a lembrança das dores eternas dos tormentos que não têm fim, ou seja, com a lembrança do fogo inextinguível e do verme imortal’. Por este meio, Pacômio se manteve afastado do mal e despertado para o melhor".

— Santo Inácio (Brianchaninov)



A lembrança da morte e o arrependimento são difíceis, e às vezes leva anos de luta para começar a ver alguns frutos reais, enquanto os prazeres do mundo nos atraem com a promessa de gratificação instantânea, mas, ao final, nos levam à morte da alma em vez da morte para a carne e para o mundo.


Para resistir aos prazeres instantâneos do mundo e ter a morte sempre à nossa frente, precisamos nos aprofundar na vida da Igreja — participando dos seus serviços, das orações, recebendo os sacramentos e desenvolvendo a ascese. A vida da Igreja é a vida de Cristo, e Ele levou uma vida de perfeita lembrança da morte.


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