Mikhail Nesterov “A Visão para o Jovem Bartolomeu” (Видение отроку Варфоломею)
Por que as litanias memoriais ortodoxas reiteram melodicamente a “memória eterna” com tanto sentimento e tanta energia? E por que o maior romancista da Ortodoxia encerrou sua última grande obra de forma tão triunfante com essas mesmas palavras? Ao mergulhar profundamente em uma única passagem da obra-prima de Dostoiévski, “Os irmãos Karamazov”, Donald Sheehan nos leva não apenas ao centro do romance, mas também ao coração da fé ortodoxa. Raramente um ensaio combina reflexão teológica, interpretação literária e narrativa pessoal de maneira tão poderosa e contínua. E raramente um ensaio comove o leitor tão profundamente, ao mesmo tempo em que fornece percepções tão originais e penetrantes.
Por Donald Sheehan
Central para a cristandade ortodoxa oriental é o canto, no final de cada funeral ortodoxo, da canção conhecida como “Memória Eterna” (em eslavo eclesiástico: Vechnaya Pamyat ). Esta canção também conclui o grande romance final de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov , quando, após o funeral do menino que Alyosha Karamazov (e o círculo de alunos ao redor de Alyosha) amava profundamente, Alyosha fala aos meninos a respeito do funeral e do significado da ressurreição, com esta breve canção como seu foco constante.
Minha tese é simplesmente esta: conhecer algo do significado desta canção é compreender tanto a fé ortodoxa oriental como o maior romance de Dostoevsky.
Podemos abordar melhor o significado desta canção seguindo a conexão entre os serviços fúnebres ortodoxos e a crucificação de Cristo. O padre Pavel Florensky, recentemente canonizado pela Igreja na Rússia, articulou a conotação perguntando primeiro: "O que o ladrão sábio pediu na cruz"? e depois respondendo, citando o Evangelho de São Lucas: "Senhor, lembra-te de mim quando vieres em Teu reino" (23.42). Florensky então continua:
“E em resposta, em satisfação de seu desejo, seu desejo de ser lembrado, o Senhor testemunha: ‘Em verdade, eu te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso’. Em outras palavras, ‘ser lembrado’ pelo Senhor é a mesma coisa que ‘estar no Paraíso’. ‘Estar no Paraíso’ é estar na memória eterna e, consequentemente, ter uma existência eterna e, portanto, uma memória eterna de Deus. Sem lembrança de Deus morremos, mas nossa lembrança de Deus só é possível através da lembrança de Deus de nós."
Florensky articula aqui a realidade essencial do cristianismo ortodoxo: a realidade relacional de toda pessoa. Somos pessoas, diz a Igreja Ortodoxa, porque cumprimos as três condições de toda a existência. Estas três condições foram articuladas no século III d.C. pelos Padres Ortodoxos conhecidos como os Capadócios. Elas são resumidas desta forma por J. D. Zizioulas em seu maravilhoso ensaio chamado "A Contribuição da Capadócia para o Pensamento Cristão":
1. Somos pessoas porque nos conhecemos como fundamentalmente livres, nem mesmo sob a mais ínfima escravidão ou limitação da história terrena ou do mundo material — uma liberdade anterior e maior do que a própria Igreja porque (como diz Zizioulas) tal liberdade "constitui o 'modo de ser' do próprio Deus".
2. Somos pessoas porque podemos nos entregar de forma livre e integral ao outro em amor próprio — o amor despojado; isto é, podemos entregar voluntariamente toda nossa individualidade por completo nas mãos de outro, na ação de amar esse outro. Zizioulas coloca isso de forma bonita: "O amor é uma relação, é a liberdade de sair de si mesmo, a quebra da própria vontade, uma submissão livre à vontade do outro".
3. Somos pessoas quando nos entendemos como totalmente singulares, completamente irrepetíveis e eternamente insubstituíveis. Como membros de uma espécie, somos apenas indivíduos substituíveis e contados em um conjunto: biológico, histórico, ou sociopolítico. Como membros de um conjunto (ou conjuntos), podemos ser obrigados a servir a propósitos extrínsecos, mesmo hostis; ou seja, podemos ser tratados como coisas. Mas, como pessoas, somos únicos e irrepetíveis; portanto, não podemos (como diz Zizioulas) "ser compostos ou decompostos, combinados ou usados para qualquer objetivo".
Estas três condições de personalidade — liberdade fundamental, amor abnegado e singularidade absoluta — lançam grande luz em relação ao que a Igreja Ortodoxa — e Dostoievski — querem dizer com a frase "Memória Eterna". Significa o seguinte: da mesma forma que o ladrão sábio alcança a personalidade ao assumir o amor a Cristo livremente (e esta liberdade é enfatizada na cena da crucificação enquanto todos zombam de Cristo ao passo que o ladrão escolhe livre e deliberadamente amar), apenas assim nos tornamos pessoas entregando livremente nossa própria vontade, em um ato de amor, nas mãos de outrem.
Dostoevsky expressa de forma bela esta compreensão ortodoxa da personalidade no início de Os Irmãos Karamazov, quando descreve a relação entre Alyosha Karamazov e seu pai espiritual, o Stárietz Zosima. "O que, então", pergunta o narrador, "é um stárietz (ancião)"? ele responde:
“O stárietz é alguém que pega a vossa alma e a vossa vontade e as absorve em sua alma e em sua vontade. Ao escolher um stárietz, abdicais de vossa vontade e a pondes em plena obediência a ele, num ato de plena renúncia de vós mesmos. Quem a isto se condena assume voluntariamente essa provação, essa terrível escola da vida na esperança de, após longa provação, vencer a si mesmo, dominar-se a ponto de poder finalmente atingir pela obediência de toda a vida a liberdade já completa, isto é, a liberdade de si mesmo, evitar a sorte daqueles que viveram uma vida inteira mas não se encontraram em si mesmos.”
Isto expressa perfeitamente a compreensão ortodoxa da realidade relacional da pessoa. E todo Os Irmãos Karamazov pode ser lido praticamente como um vasto comentário a esta única passagem. Aos 19 anos, Alyosha Karamazov luta para alcançar a "liberdade perfeita" encontrada apenas na obediência amorosa a seu pai espiritual, o Stárietz Zosima. Aos 28 anos, Dmitri a princípio rejeita o modo ortodoxo de personificação, mergulhando em uma vida de desejos totalmente autônomos e sua infinita autossatisfação. Mas então, no decorrer do romance, ele descobre uma experiência mais profunda e diretamente ortodoxa quando descobre a realidade relacional da personalidade mediante seu amor por Grushenka.
O irmão do meio, Ivan, de 24 anos, rejeita os caminhos de seus dois irmãos em nome de uma autonomia ainda mais terrível: não a autonomia passional que seu irmão mais velho Dmitri tenta, mas uma autonomia espiritual, na qual ele afirma sua própria vontade como mais perfeita do que a vontade de Deus na criação do mundo. A agonia espiritual e psíquica de Ivan nas 100 páginas finais do romance é a revelação de Dostoievski do que inevitavelmente acontece àqueles que tentam negar ou desfazer a realidade ortodoxa da personalidade relacional. É a tentativa de desfazer a Memória Eterna através do esquecimento obstinado.
Sob esta luz, então, quero analisar aquele momento surpreendente do romance quando Dmitri, tendo sido erroneamente detido e encarcerado por dois meses pelo assassinato de seu pai (e prestes a ser condenado injustamente por isso), diz isto a seu irmão Alyosha que o visita na prisão:
“’Rakitin não entenderia isto’, começou ele, numa espécie de êxtase, por assim dizer, ‘mas você, você vai entender tudo. É por isso que tive sede de você... Irmão, nestes últimos dois meses eu senti um novo homem em mim, um novo homem surgiu em mim! Ele estava calado dentro de mim, mas se não fosse por este raio, ele nunca teria aparecido. Assustador! O que me importa se eu passar vinte anos extraindo minério de ferro nas minas, não tenho medo disso, mas tenho medo de uma outra coisa agora: que este homem ressuscitado não se afaste de mim! Mesmo lá, nas minas, no subsolo, você pode encontrar um coração humano no condenado e assassino ao seu lado, e você pode estar perto dele, porque lá também é possível viver, e amar, e sofrer! Você pode reanimar e ressuscitar o coração congelado neste condenado, você pode cuidar dele por anos, e finalmente trazer da caverna para a luz uma alma que agora é elevada, uma consciência sofredora. Você pode reanimar um anjo, ressuscitar um herói! E há muitos deles, há centenas, e todos somos culpados por eles! Por que eu tive um sonho com um ‘pequenino’ em um momento como este? Por que o ‘pequenino é pobre’? Era uma profecia para mim naquele momento! É para o 'pequenino' que eu irei. Porque todos são culpados por todos os outros. Por todos os 'pequeninos', porque há crianças pequenas e crianças grandes. Todas as pessoas são 'pequeninas'. E eu irei por todos eles, porque deve haver alguém que irá por todos eles. Eu não matei o pai, mas devo ir. Eu aceito! Tudo isso veio até mim aqui. . . Dentro destas paredes descascadas. E são muitos, há centenas deles, no subsolo, com martelos em suas mãos. Oh, sim, estaremos acorrentados, e não haverá liberdade, mas então, em nossa grande dor, nos levantaremos novamente em alegria, sem a qual não é possível que o homem viva, ou que Deus seja, pois Deus dá alegria, é sua prerrogativa, uma grande prerrogativa...’”
Quero puxar três linhas deste discurso complexo e revelador. A primeira linha ocorre quando Dmitri diz: "Surgiu em mim um novo homem! Ele estava calado dentro de mim, mas se não fosse por este raio, ele nunca teria aparecido". Este eu recém-ressuscitado (ou renascido) é, acima de tudo, um eu lembrado; isto é, é um eu que sempre esteve "calado dentro dele", mas que só pôde se manifestar — isto é, ser lembrado — pelo "raio" da relacionalidade liberado pela morte de seu pai. Daí, a segunda linha: "Eu não matei o pai, mas devo ir. Aceito!" As paredes da autonomia são aqui totalmente derrubadas, pois Dmitri aceita voluntariamente a realidade ortodoxa na qual "todos são culpados por todos", porque cada pessoa possui apenas uma personalidade relacional. O efeito em Dmitri é a pressa de entender que, à medida que a falsa liberdade da autonomia obstinada desaparece, surge a alegria genuína. Aqui está a terceira linha: "Oh, sim, estaremos acorrentados, e não haverá liberdade, mas então, em nossa grande dor, nos levantaremos de novo em alegria, sem a qual não é possível ao homem viver, ou a Deus ser...” Esta terceira linha associa explicitamente a chegada da verdadeira alegria ao fim da falsa liberdade, uma alegria que é essencial, diz Dmitri, tanto para a vida humana quanto para o ser divino. Juntas, estas três linhas - o eu ressuscitado; o eu relacional; e o eu alegre — são os três aspectos determinantes da personalidade em Os Irmãos Karamazov.
E todos os três aspectos podem ser mais bem compreendidos — em Dostoievski e na Cristandade Ortodoxa — como aspectos do significado da Memória Eterna.
Florensky abre ainda outra dimensão deste significado ao dizer: "'Minha memória eterna' significa tanto a 'memória eterna' de Deus de mim como minha 'memória eterna' de Deus. Em outras palavras, é a memória eterna da Igreja, na qual Deus e o homem convergem".
Esta convergência de Deus e do homem, convergência na qual a pessoa humana é entendida como se tornando como Deus, é praticamente desconhecida no Cristianismo Ocidental (exceto naquelas experiências muito raras chamadas "místicas"), mas é operante em toda parte na Cristandade Oriental, onde o termo dado é a palavra grega theosis. Na Ortodoxia, a teose é considerada o objetivo normativo de toda pessoa na Terra - e não a rara experiência de uma elite espiritual denominada "mística". O que impulsiona a pessoa a alcançar a teose é, simplesmente, obedecer ao que Cristo, nos evangelhos, chama de primeiro e grande mandamento: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua mente" (Mt 22.37). Nesta cena que estamos examinando, Dmitri ilustra perfeitamente este amor quando termina seu discurso a Alyosha, dizendo: "E então, do fundo da terra, nós, os homens do subsolo, começaremos a cantar um hino trágico a Deus, em quem há alegria! Salve a Deus e sua alegria! Eu o amo!". Aqui está, então, o motor que move o processo da theosis: o poder de amar a Deus. Além disso, este é também o motor que move o que Cristo (na mesma passagem em São Mateus) chama de segundo dos dois grandes mandamentos: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Mt 22.39). Ao amar o próximo - isto é, amar aquele que está sempre diante de você, 'perto' ou ao seu lado - da mesma maneira que você ama a Deus, você está experimentando diretamente o caminho em que o Outro é sempre você mesmo. Estes dois grandes mandamentos são, para o coração ortodoxo, as injunções diretas de Cristo a cada um de nós para entrar no caminho da theosis.
Então Dostoevsky nos dá a plenitude da theosis quando Dmitri diz, na véspera de seu julgamento, a Alyosha o que o próprio Cristo diz a Seus discípulos na véspera de Sua prisão e crucificação: "Eu sou". Dmitri diz:
“E me parece que há tanta força em mim agora que posso superar tudo, todos os sofrimentos, apenas para falar e dizer a mim mesmo a todo o momento: Eu sou! Em mil tormentos - eu sou; contorcendo-me sob tortura - mas eu sou. Preso em uma torre, mas ainda existo, vejo o sol, e se eu não vejo o sol, ainda sei que é. E toda a vida está lá - em saber que o sol está...”
Este discurso, se preferir, puro canto ontológico, no qual a afirmação do cantor de ser ("Eu sou!") comunica êxtase ontológico a todo ser vivo de tal modo que cada coisa criada permanece completa e perfeitamente ela mesma no mesmo momento em que cada coisa se torna uma única nota na vasta canção do cantor. Em outras palavras, o amor do cantor por Deus converge totalmente com o amor que flui de Deus para o cantor. Assim, o resultado de entrar na canção ontológica é o que se pode chamar de vivacidade incessante do estado de theosis. Pois esta é uma vivacidade na qual a pessoa humana passa a participar, por meio do amor, diretamente da vivacidade eterna de Deus. Esta participação no ser divino é o que Florensky denomina "a memória eterna da Igreja na qual Deus e o homem convergem". "E", acrescenta Florensky, "esta memória eterna é uma vitória sobre a morte".
Nas "Conversas e Homilias do Stárietz Zosima", reunidas por Alyosha Karamazov após a morte de seu amado Ancião, ocorre esta extraordinária passagem:
“Muito na terra está oculto de nós, mas em seu lugar nos foi concedido um segredo, um sentido misterioso de nosso vínculo vivo com o outro mundo, com o mundo celestial superior, e as raízes de nossos pensamentos e sentimentos não estão aqui, mas em outros mundos. É por isso que os filósofos dizem que é impossível na Terra conceber a essência das coisas. Deus pegou sementes de outros mundos e as guardou nesta terra, e levantou seu jardim; e tudo o que poderia brotar germinou, mas ele vive e cresce somente por meio da sensação de estar em contato com outros mundos misteriosos; se esta sensação for enfraquecida ou destruída em você, aquilo que cresceu em você morre. Então você se torna indiferente à vida, e chega até a odiá-la. É o que eu penso.”
Esta passagem é como bem diz Victor Terras, "a chave-mestra da interpretação filosófica, bem como da estrutura", da totalidade de irmãos Karamazov. Pois esta passagem elucida duas ideias poderosas e conectadas: (1) que podemos firmemente (embora obscuramente) intuir o caminho pelo qual este mundo empírico de nossas vidas atuais está, de fato, enraizado no mundo celestial superior de Deus; e (2) que o que dá frutos neste mundo só ocorre quando nutrimos em nossas vidas aquelas três sementes que Deus semeou diretamente em nós, uma nutrição que ocorre quando caímos no chão e morremos para que estas sementes possam primeiramente brotar e, então, dar frutos. Estas duas ideias, então, nos ajudam a entender porque Dostoievski escolheu como epígrafe de seu romance esta máxima de Cristo: "Em verdade, em verdade vos digo: Se a semente do trigo não cair na terra e não morrer, ela permanece sozinha; mas se morrer, dá muito fruto" (João 12.24). O que Florensky chama de vitória sobre a morte é o que Cristo aqui descreve como a forma pela qual a semente dá frutos. Este caminho de fecundidade é o caminho da Memória Eterna.
Assim, podemos ver como tanto a estrutura artística quanto o significado filosófico do romance são mantidos nestas duas ideias. Podemos ver os três irmãos, ao longo de todo o romance, se aproximando para decretar estas duas ideias - ou então perdendo-as completamente ou (com Ivan) deliberadamente se distanciando delas. E o que conecta estas duas ideias é, mais uma vez, a Memória Eterna, aqui entendida como o modo como a semente geneticamente "se lembra" do fruto do qual brota e, se as condições estiverem certas, logo se tornará. A verdadeira lembrança está, portanto, diretamente ligada ao processo em que morremos para entrar em fecundidade. E este processo é o de lembrar-se de Deus e de ser lembrado por Ele.
Agora somos capazes de ver algo da beleza da cena final no romance. Nesta cena, Alyosha conversa com os doze meninos com quem ele acaba de assistir ao funeral de Ilyusha, o menino que todos eles tinham aprendido a amar em seus últimos dias de vida. Quase no final de seu discurso aos meninos, Alyosha diz o seguinte:
“Sejamos primeiro e antes de tudo amáveis, depois honestos, e depois - nunca nos esqueçamos de uns dos outros. Digo isto novamente. Dou-lhes minha palavra, senhores, que de minha parte jamais esquecerei nenhum de vocês; cada rosto que está olhando para mim agora, eu me lembrarei, seja mesmo depois de trinta anos.”
Esta forma é, naturalmente, a forma ortodoxa da Memória Eterna: a semente atual do amor real já está se tornando a fecundidade incessante da memória. E esta fecundidade da memória é - na grande frase de Florensky - "uma vitória sobre a morte", não porque apagamos os mortos no esquecimento de nossa mente (o que a cultura secular chama de "superar"), mas precisamente porque os mantemos fortemente, na verdade, intensamente presentes em nosso amor. E Dostoevsky é luminosamente claro em sua compreensão ortodoxa do discurso de Alyosha. Ao manter o outro em nosso amor, nos tornamos semelhantes a Deus na medida em que nos lembramos da semente de Deus em nós mesmos no exato instante em que vemos a fecundidade totalmente desenvolvida do outro em Deus. Desta maneira, o outro começa a se tornar o nosso próprio eu. Alyosha conclui desta forma:
“Todos vocês me são queridos, senhores, de agora em diante, eu os manterei em meu coração, e lhes peço que me conservem também em seus corações! Bem, e quem nos uniu neste sentimento bom e gentil, que lembraremos e pretendemos recordar sempre, se não Ilyushechka, esse bom rapaz, esse rapaz gentil, esse rapaz que nos é querido desde há muito tempo! Nunca o esqueçamos, e que sua memória seja eterna e boa em nossos corações agora e sempre!”
O ponto é magnificamente claro. A fecundidade da Memória Eterna surge sempre e exclusivamente de uma pessoa real — aqui, Ilyusha — que une no amor todos os crentes ortodoxos que cantam seu falecimento e o acolheram em seus corações. Assim, o que começa em luto isolado, termina em alegria relacional. Tal é a forma da Memória Eterna na Ortodoxia e em Dostoievski.
E assim surge ainda outro significado: pela ação da Memória Eterna, a pessoa que morreu continua a atuar na vida daqueles que continuam a amá-lo. No meio do romance, no capítulo chamado "Caná da Galileia", Alyosha ajoelha-se ao lado do caixão de seu pai espiritual, o Ancião Zosima, enquanto o episódio do Evangelho de São João que narra a transformação da água em vinho por Jesus está sendo lido em voz alta. Enquanto o episódio é lido, Alyosha ora em silêncio, e cochila ligeiramente - e então ele logo tem uma visão em que vê o Padre Zosima sentado à mesa de casamento em Caná, onde o próprio Jesus está sentado. Quando o Ancião avista Alyosha, levanta-se e caminha em sua direção, sorrindo e dando-lhe boas-vindas, Alyosha registra perfeitamente a compreensão ortodoxa do que está agora se passando: "Ora, ele está no caixão... Mas aqui, também". Ou seja, Alyosha enxerga perfeitamente como seu pai espiritual está morto no caixão e, ao mesmo tempo — simultaneamente — está vivo diante dele.
Nas ações da Memória Eterna, a morte na terra é derrotada pela vivacidade incessante em Deus.
A cena continua com Alyosha ouvindo seu amado professor falando-lhe palavras de sabedoria. E então Alyosha, terminada a visão, sai sob o imenso céu noturno onde, diz o narrador, "o silêncio da terra parecia fundir-se com o silêncio dos céus, a majestade da terra tocava a majestade das estrelas". Em seguida, Alyosha de repente cai ao chão, chorando de alegria e beijando a terra; e a voz do Ancião ressoa novamente na alma de Alyosha: "Rega a terra com as lágrimas de tua alegria, e ama essas lágrimas...". O narrador em seguida diz: "Era como se fios de todos aqueles inumeráveis mundos de Deus se juntassem em sua alma, e ela tremia muito, 'tocando outros mundos'". Esta última frase é, naturalmente, a frase do Ancião Zosima, aqui lembrada por Alyosha, sim, mas acima de tudo dada diretamente pelo Ancião a Alyosha neste instante, moldando e criando realmente este momento. "Nunca, nunca em toda sua vida", diz o narrador, "Alyosha esqueceria esse momento". Este momento é, para Alyosha, o momento da theosis, um momento em que ele participa plenamente da existência divina, um momento, isto é, da Memória Eterna. E este momento, Dostoevsky deixa bem claro no capítulo, é um momento que é inteiramente dado pelos “mortos” aos vivos em uma ação de amor. O capítulo termina desta forma: "' Alguém visitou a minha alma naquela hora', diria Alyosha depois, com firme crença em sua palavra". Em Memória Eterna, os entes queridos agem em amor diretamente na vida dos vivos.
----------------------------------------------------------------------------------
Para concluir, quero explorar o significado ortodoxo da Memória Eterna à luz da minha própria experiência em me tornar ortodoxo. Faço isso não porque ache que minha própria experiência é especialmente esclarecedora (não é); nem porque a entenda profundamente (não entendo). Estou utilizando minha própria experiência simplesmente porque ela é minha.
Fui criado em um lar violento, onde, até os nove anos de idade, o vício do meu pai pelo álcool alimentou a violência aparente ou pouco contida, um lar onde minha mãe foi espancada repetidamente (lembro-me do rosto dela coberto de sangue). O álcool destruiu minha casa num violento paroxismo na noite de 4 de julho de 1949, no verão em que eu tinha nove anos de idade. A polícia estava em nossa sala na madrugada do dia 5 de julho. Eu me lembro de tudo claramente.
Cerca de três semanas antes, em junho, levei um tiro no peito com uma pistola, a bala entrou dois centímetros abaixo do meu coração. O atirador era meu melhor amigo, também com nove anos, havíamos encontrado a pistola de seu irmão mais velho enquanto brincávamos em sua casa. O que me lembro de forma mais nítida do tiro - lembro-me visceralmente, sem ter que fazer nenhum esforço consciente para lembrar - é estar deitado na mesa de cirurgia e ver o médico sobre mim, suas mãos na ferida muito habilidosa e ternamente sondando a bala - seus grandes braços e tronco caindo em mim, seu rosto silencioso em quietude concentrada se curvando sobre mim, com suas mãos firmes, precisas e delicadas.
Também me lembro de meu pai e minha mãe entrando na sala de cirurgia, meu pai vestido às pressas, enquanto lutava contra uma forte ressaca para se vestir, ambos com seus rostos feitos máscaras vivas do pânico. Mas lembro-me de me sentir totalmente sereno nas mãos deste cirurgião; o terror de meus pais não me afetou enquanto eu assistia pacificamente aquelas mãos que devolviam minha vida, mãos que estavam desfazendo a morte que meu infeliz amigo quase me havia dado. Cerca de três semanas depois, meu lar se desfaria e minha mãe levaria os três filhos (minha irmã, meu irmão e eu) para a casa de seu irmão. Mas o terror da catástrofe de 4 de julho não me pegaria da mesma forma que um mês antes; não me abalaria da mesma forma que um cachorro sacode um pequeno animal que capturou, para quebrar seu pescoço. No momento da ruptura, eu já tinha recebido outras mãos no meu coração, minha vida já me havia sido devolvida.
Naquele verão de 1949, a casa de minha família lentamente, mudou-se rumo à catástrofe do dia 4 de julho. Na última semana de junho, eu já havia me recuperado quase totalmente do ferimento a bala, mas a embriaguez do meu pai havia piorado. Ele voltava para casa todas as tardes naqueles dias bastante bêbado, passando a noite embriagado. E à medida que se embriagava, iniciava um padrão de explosões de raiva e destruição das coisas, seguidas por períodos de uma calma sinistra. Após cada explosão, nós quatro - minha mãe, minha irmã, meu irmão e eu - andávamos na ponta dos pés, sussurrando, para não provocar uma nova onda de fúria.
Mas, naquela noite em particular no final de junho, as crises de raiva haviam aumentado por mais tempo, e os períodos de calma significavam somente que ele estava reunindo forças para a próxima onda de violência. A segunda rodada havia durado cerca de vinte minutos na cozinha - quebrando alguns pratos - depois ele saiu furioso da cozinha para a sala - e tudo ficou quieto. Caminhando na ponta dos pés pela sala de jantar, espreitei pela porta da sala. Ele estava sentado no sofá, olhando fixamente para suas mãos.
Depois fiz algo que ainda me tira o fôlego. Atravessei a sala de estar e sentei-me no sofá ao lado dele. Peguei uma revista da mesinha de centro e abri nas primeiras fotos que encontrei, e apontei para uma. "Olha, pai, isso não é interessante?" Não ousei olhar para ele.
Nenhuma resposta. Depois de um momento, olhei para ele, e vi que ele estava olhando para mim. Mais de cinquenta anos depois, ainda posso ver os olhos de meu pai. Eram olhos tristes, mas pacíficos, afetuosos, e profundamente jovens, com toda a selvageria extinta e, no lugar dela, algo semelhante à quietude. E eu me sentia em paz do mesmo modo que havia me sentido na mesa de cirurgia do hospital três semanas antes.
Ele me olhou por um longo, longo minuto, e depois falou. "Você é o único que não tem medo de mim".
Eu tinha idade suficiente para perceber a gratidão na voz do meu pai. E assim, até hoje, sei como soa a pessoa que meu pai é quando ele fala.
Este momento foi rapidamente desfeito, pois aquele verão na vida de nossa família estava totalmente nas mãos violentas de Satanás. Mas aquele instante foi - além de toda lógica que conheço - uma semente.
No final de março de 1983, fui levado a visitar o túmulo de meu pai. Ele havia morrido sete anos antes, e eu ainda não havia percebido exatamente como o fato irrevogável. Para mim, creio que foi como se sua morte tivesse acontecido de forma tão frequente e profunda e há tantos anos que, quando ele realmente morreu em 1976, não pude de alguma forma aceitar o fato de uma perda tão longa, constante e profunda. Mas agora, naquele mês de março, eu sabia que tinha que ir ao seu túmulo.
Carol, minha esposa, alegre e amorosamente me acompanhou na viagem de 2. 100 quilômetros desde as montanhas de New Hampshire até Memphis, Tennessee, junto com nossos dois filhos, David (14 anos) e Rowan (3 anos).
Na noite anterior ao cemitério, ficamos em um motel em Memphis, e passei quase duas horas escrevendo uma longa carta para meu pai. Aqui, em parte, é o que escrevi naquela noite para meu pai:
Onde você estava? Nos anos - longos, longos anos perdidos - de minha infância, quando estava assustado, ou maldoso, ou louco, ou cansado: você me abraçou? Você me disse que eu estava bem, que estava tudo bem? Ou você estava sempre com medo, ou louco, ou maldoso, ou cansado? Quando a mãe estava fria ou desdenhosa, você estava lá para ajudá-la a superar isso? Ou o desprezo dela te assustou tanto?
E posso abandonar - livre e totalmente - meu apego à dor de nosso passado: não desistir de nosso passado - apenas estar preso, com tanta ânsia, à dor de nosso passado? As feridas de nosso corpo cicatrizam mais rápido: apenas feridas na carne. Mas ainda posso ver claro como o dia, e sinistro, o corte na cabeça de mamãe, o sangue em seu rosto, você nos arrastando para baixo, mamãe contra uma parede branca, seu rosto como uma máscara de terror: você está dizendo: "Aí está sua mãe, olhe para ela".
Ainda hoje vejo tudo isso - e me entrego ao sofrimento disso. Realmente dói - mas eu abro minhas mãos, veja: desliza para longe. A dor é uma coisa, uma substância verde, viscosa, maleável, semissólida - e NÃO SOU EU.
Será que alguma vez (qualquer um de nós) acusamos nossos pais? Será que alguma vez os amamos? Algum dia amaremos sem impiedade? A crueldade é nossa primeira reação?
Digo agora: você está livre agora da crueldade do amor. Pois o desprendimento celestial continua para você, em mim, pois para você; deve assim agir, que o que você faz agora, depois da morte, muda o que eu sou agora, em vida. . . .
Assim eu vim pai, para enterrar para sempre a minha necessidade de sofrer por meio de você. E para deixar crescer a partir desta semente de hoje um amor mais profundo, mais pleno entre nós.
Eu te amo. Você me ama. Não esqueça isto.
Em amor, seu filho,
Donald
Depois de terminar de escrever esta carta, encontrei uma Bíblia no quarto do hotel. Demorei um pouco, mas finalmente encontrei a passagem em Gênesis que eu procurava - quando Abraão levanta a faca sobre seu filho Isaac, mas o anjo segura sua mão.
A manhã seguinte foi sexta-feira, e o sol quente da primavera do Tennessee brilhava por toda parte quando chegamos ao túmulo de meu pai. Enquanto Rowan se afastava para olhar as flores exóticas do sul, nós três nos ajoelhamos junto ao túmulo. Eu então li minha carta em voz alta para ele, minha voz às vezes vacilante, mas continuando até o final, onde eu pedi perdão.
Então li para ele em Gênesis, e quando cheguei ao verso - "Abraão estendeu sua mão, e pegou a faca para matar seu filho" (22:10) - eu não pude continuar, pois estava muito abalado soluçando. Mas então continuei e após terminar de ler esperei por um longo minuto, e me vi dizendo a coisa que tinha vindo de tão longe para dizer: "Eu não morri, pai, você não me matou, estamos bem agora, estamos realmente bem".
A longa viagem de volta a New Hampshire foi tranquila. Mas como eu e Carol precisávamos estar no trabalho na segunda-feira de manhã - e David na escola - dirigimos o mais rápido que pudemos. Por isso, era quase meia-noite do domingo de Páscoa, 4 de abril, quando chegamos em casa. Tiramos nossos filhos adormecidos do carro e colocamos em suas camas, depois descarregamos o carro e, exaustos demais até mesmo para conversar, caímos em nossa cama como pedras jogadas na água. Era por volta da 1:00 da manhã.
Na madrugada do dia 5 de abril, acordei subitamente. O que me despertou foram estas palavras que soaram em minha mente: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador. Por um instante julguei que alguém havia falado em voz alta, mas então percebi que as palavras estavam em mim. Sentei-me, renovado e atento. As palavras se repetiam. E depois repetidas novamente. Olhei para a janela, e já estava amanhecendo. As palavras continuavam a repetir-se.
Então, saí da cama. As palavras em mim eram calmas, nem lentas nem rápidas, com ênfase no nível, cada palavra distinta fluindo para a próxima, com uma pequena pausa após as últimas palavras e depois todo o começo novamente.
Eu me vesti e desci as escadas, me perguntando porque me sentia tão bem depois de uma viagem tão longa e um descanso tão rápido. Estava me perguntando porque a oração agora ocupava cada pequena fração da atenção mental que eu tinha - pois, perfeitamente e, sem o menor esforço, a oração simplesmente me preenchia completamente.
Eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. Mas eu não estava nem um pouco perturbado. E enquanto estava sentado na nossa pequena cozinha, eu sabia que poderia parar completamente a experiência a qualquer instante que escolhesse. Mas não queria terminar sentindo-me tranquilo e renovado enquanto a oração continuava fluindo em mim, de forma clara, substancial e real.
Passou-se cerca de uma hora desta beleza em silêncio, e então tive que despertar a família. Para minha surpresa, descobri que podia falar com eles e fazer as coisas sem que a oração diminuísse de maneira alguma. Depois do café da manhã, fui até o carro e desci a rodovia até a escola onde eu lecionava. A oração continuava incessante, mas totalmente invisível.
Negociei o dia inteiro, dando aulas e conversando com as pessoas, com a oração nunca faltando uma única vez. No final da tarde, voltando para casa, eu não conseguia me lembrar de nada do que havia dito o dia todo, mas aparentemente ninguém havia notado nada de estranho em mim, então provavelmente, como na maioria dos dias, eu não havia dito nada em particular (o que o professor faz?).
A oração continuou toda a noite e me despertou na manhã seguinte. E durante todo o dia seguinte, ela continuou como antes. Não falei disso a ninguém, nem mesmo à Carol, a quem contei tudo o que era importante e a maior parte do que não era. Pois eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo.
Assim, os dias se seguiram naquele abril de 1983, e três semanas se passaram desta maneira. Certa tarde, eu estava andando pela biblioteca da faculdade, e de repente parei e peguei um livro da estante. O livro era Relatos de um Peregrino Russo, um livro russo anônimo do século XIX.
De repente, lembrei-me. Anos antes eu tinha lido a bela história de J. D. Salinger, Franny e Zooey, onde Franny tem um grande desejo de dizer esta oração, chamada Oração de Jesus, e ela carrega consigo um pequeno livro com este título. Fiquei atônito. Entre outras maravilhas, eu nunca soube até este momento que era um livro de verdade que Franny carregava. Eu pensava que Salinger tinha inventado para sua história.
Encontrei uma cadeira, e li as cerca de vinte páginas iniciais de Relatos de Peregrino Russo. Lá estava esta mesma oração, e era a muito conhecida (assim me disse uma nota de rodapé) na Igreja Ortodoxa na Rússia. Eu nunca havia sequer ouvido o nome de tal igreja. Mas o livro me disse o fato essencial de que eu mais precisava. Minha oração tinha um lar.
Naquela noite, falei com Carol - mas de modo hesitante. Não falei nada a respeito da minha experiência contínua nesta oração, porque não conhecia nenhuma palavra que parecesse minimamente verdadeira. Assim, falei a respeito do livro e do lindo amor do Peregrino por Cristo. Ela ficou surpresa, um pouco perplexa, porém gentil e atenciosa.
Durante os meses seguintes, eu comecei algo diferente, algo mais consciente. A oração estava começando a diminuir e, quando me levantei logo após o amanhecer ( agora sempre acordado, independentemente de quando fui dormir), li os salmos em voz alta de um antigo exemplar do Livro de Oração Comum, lenta e suavemente. Quando eu fazia a oração agora, parecia que estava orando intencionalmente, da forma que agora estava lendo os salmos. Durante o dia, a oração ia e vinha, mas ela ainda estava ativa em mim.
E ainda me perguntava, de vez em quando, o que era uma Igreja Ortodoxa. Havia alguma neste país?
Foi então que, no final de janeiro de 1984, eu agi por impulso. Fui visitar um minúsculo mosteiro beneditino em Connecticut. Este era um lugar que um poeta que eu conhecia e gostava havia visitado com frequência e amado muito. Descobri que o abade, padre. John Giuliani era um homem cordial, perspicaz e tranquilo, sem complicações. No segundo dos meus três dias no mosteiro, perguntei-lhe depois da missa matinal se podia falar com ele a sós, com o coração na boca.
E assim contei ao padre John toda a história dos meus agora dez meses de experiência com a oração. Ele ouviu em silêncio, de uma forma intensa, o que me animou nesta minha primeira vez em revelar. Sentei-me de cabeça baixa, olhando para minhas mãos, falando por um muito tempo. Quando terminei, olhei para ele - e me surpreendi. Seus olhos estavam brilhantes de lágrimas.
"Você sabe, meu querido, que seu pai lhe deu um grande presente. Quando você foi ao túmulo dele, descobriu que ele estava aberto - do jeito que o túmulo de Cristo está sempre aberto - e que o amor não morre, mas une todos os mundos. Ele te deu esta oração, meu querido, porque tal amor entre vocês nunca cessa, mas continua a trabalhar".
Ele levantou sua mão num gesto gracioso.
"Você deve continuar a seguir o caminho que Deus está lhe chamando. Esta dádiva de seu pai é uma semente muito preciosa". Fiquei impressionado e grato por aquilo que ele me havia falado. Quando fomos até a porta, ele se voltou para mim. "Oh, você sabe, querido, a Igreja Ortodoxa está em toda parte. Basta olhar em volta".
Isto foi em 28 de janeiro de 1984. Voltei para casa com algo parecido a uma semente de um grande entendimento. E durante todo aquele inverno e primavera, quando eu orava os salmos e as orações da manhã e da noite, de alguma forma eu sentia a memória da presença de meu pai de forma clara, leve e essencial. E eu me perguntava o que o padre John quis dizer com a Igreja Ortodoxa estar em toda parte. Nova York? Boston?
Assim, em meados de maio de 1984, abri a lista telefônica para procurar um número que conhecia muito bem, e meus olhos viram uma lista da Santa Igreja Ortodoxa da Ressurreição em uma cidade próxima, ao norte. Isso literalmente me tirou o fôlego.
Esperei três dias para poder telefonar com calma. O telefone foi atendido pelo maravilhoso padre que viria a ser meu primeiro pai na Ortodoxia, o padre Vladimir Sovyrda. Eu sabia que estava voltando para casa.
No dia 8 de setembro de 1984, quando fui crismado ortodoxo, a oração em mim havia cessado completamente. Meu pequeno drama espiritual havia terminado e a semente havia desaparecido. Mas diante de mim agora estava aberta a imensa e interminável fecundidade do caminho Ortodoxo. E eu sabia naquele momento o que sei até hoje: meu pai vai antes de mim por aqui.
----------------------------------------------------------------------------------
Eu lhes disse tudo isso simplesmente para esclarecer este ponto. Como disseram os Padres Ortodoxos há muito tempo, somos pessoas porque somos totalmente únicos, irrepetíveis e insubstituíveis para sempre. Como membro de uma espécie biológica, ou como uma entidade socioeconômica, ou mesmo como paroquiano e subdiácono ortodoxo, sou totalmente repetível e, de todas as maneiras concebíveis, substituível. Mas como uma pessoa a quem estas coisas aconteceram e as consequências que se seguiram, só posso fazer eco do canto ontológico de Dmitri: Eu sou!
Após a morte do padre Zosima, Alyosha compõe uma biografia do Stárietz de (no título Alyosha lhe dá) "Suas Próprias Palavras". Nas primeiras páginas desta biografia, o padre Zosima diz o seguinte:
Da casa dos pais eu trago apenas lembranças preciosas, pois nenhuma lembrança é mais preciosa para um homem do que as de sua primeira infância na casa dos pais, e isso é quase sempre assim, desde que haja um pouco de amor e unidade na família. Mas de uma família muito ruim, também é possível guardar lembranças preciosas, desde que a alma saiba buscar o que é precioso.
Aqui, talvez, esteja a mais bela compreensão da Memória Eterna tanto na Ortodoxia como em Dostoievski. É a busca da alma pelo que é precioso - ou seja, o que está incessantemente vivo — mesmo nas circunstâncias mais sombrias, mais aflitas. E o ponto crucial, nos romances e na Igreja, é que essa busca pode ter sucesso de forma mais plena e direta por meio do que Dostoievski chama de "obediência de toda uma vida" à Igreja Ortodoxa histórica e às suas longas tradições de jejum e oração. Pois nesta obediência, evitamos o terrível destino daqueles que (como Ivan Karamazov) procuram se encontrar em si mesmos.
Em vez disso, como Alyosha e (no final) Dmitri, passamos a entender que somos preciosos não em nossa autoafirmação, mas somente em nosso auto esvaziamento.
Comentários